Salvador, 23/07/2004
Alagados troca palafitas por terra firme
Na capital baiana, favela que já foi a
maior do país hoje luta para eliminar moradias precárias e com altos
riscos para os moradores

Crédito: CONDER/Divulgação
Conheça o projeto
Saiba mais sobre o Habitar Brasil/BID
Leia também
Era cortiço, hoje é parque de 18 mil m²

CHICO MENDES
da PrimaPagina

 

Em alguns lugares do Brasil a expressão “a casa cai” é só uma metáfora
para se referir a uma situação de perigo. Mas em Salvador, na Bahia,
mais precisamente no bairro de Alagados, a expressão é interpretada ao
pé da letra. Lá, as casas caem, literalmente.

 

Hoje, com cerca de três mil palafitas a situação é branda se comparada
com os anos 1960 e 1970. À época, Alagados era a maior favela do Brasil,
com cerca de 100 mil habitantes. Mesmo hoje, os perigos desse tipo de
construção continuam presentes. Para alguns moradores que já deixaram as
palafitas, será difícil esquecer os dias em que a “casa caiu”.

 

Dos sete anos em que residiu em uma palafita no bairro de Alagados 4,
Andréa Oliveira Teles a refez 14 vezes. Ou seja, ela reconstruía sua
palafita duas vezes ao ano. “Isso não é vida pro ser humano. É muito
sufoco”, diz. Dos utensílios domésticos que Andréa tinha só lhe restou a
roupa do corpo. “Dá última vez, a maré destruiu tudo”.

 

A maré que destrói as palafitas é também a que separa os casais. Cansada
do sofrimento e da agonia de conviver com o imprevisto, Andréa desistiu
de refazer pela 15° vez a sua palafita. Foi para casa dos pais, mas
teve que deixar o marido, José Carlos Ferreira, para trás. “Ele foi
morar com o pai, e eu vim com nossa filha pra casa de minha mãe”, conta.

 

 

Não bastasse a angústia de esperar o dia em que a água invadisse a
palafita, os moradores também enfrentam o estigma da falta de recursos
básicos de uma moradia. Banheiro, praticamente não existe. Tudo é na
base do improviso. “A gente faz um buraco na madeira e aí cai na água”,
conta Andréa. Algumas décadas atrás, por exemplo, a população
economizava com o gás de cozinha. Não que a situação fosse melhor
naqueles tempos, afinal, o gás era proveniente da combustão do lixo que
foi usado para aterrar algumas áreas de Alagados. “Eles colocavam um
tubo que conduzia o gás produzido pela combustão do lixo e usavam em
suas casas”, conta César Ramos, gerente de projetos da Secretaria de
Habitação do Ministério das Cidades.

 

A realidade em Alagados começa a mudar vagarosamente. No final dos anos
1970, após um robusto investimento do governo federal através do extinto
programa do Banco Nacional de Habitação (BNH), as palafitas foram
eliminadas. Porém, não tardou para que uma nova invasão ocorresse. Hoje,
aos poucos, as famílias são retiradas das palafitas e transferidas para
casas de alvenaria, construídas com recursos do Estado, União, Banco
Mundial e BID.

 

Em Alagados 4 e 5, regiões atingidas pelo programa Habitar BID/Brasil
que tem o apoio do PNUD, 121 famílias dormem mais tranqüilas, sem que o
pesadelo da água invadindo a palafita atrapalhe o sono.

 

Experiência vivida por Silvana Corrêa dos Santos ilustra bem o porquê
das noites de pesadelo. “Estávamos dormindo, de repente deu um estalo na
cozinha. Metade da palafita havia desabado, inclusive uma parte do
quarto dos meninos, que correram para parte da sala que continuava de
pé”. Mesmo assim, sem ter para onde ir, ela reconstruiu a palafita,
comprou novos móveis, fogão e geladeira que havia perdido no acidente.

 

Não demorou muito para ela enfrentar problema igual. Certa tarde, ainda
no trabalho, Silvana conta que ligaram avisando que a água estava
subindo. “Chovia muito naquele dia, e quando cheguei só deu tempo de
salvar a geladeira, a cama e o sofá”, relata. O fogão, caiu novamente.

 

Silvana vive hoje em um dos conjuntos do programa Habitar/Brasil.
Debaixo do teto de concreto e da parede de alvenaria, ela se sente muito
mais segura. “Mudou muito. Mas ainda falta policiamento”, afirma.
Polícia, aliás, que ela teme mais do que a maré que levou os seus bens.
“Quando eles chegavam, era bala pra todo o lado”.

 

Além das casas, o projeto também oferece aos moradores cursos sobre
reaproveitamento de alimentos, educação ambiental, entre outros. Segundo
Glória Novaes, coordenadora da área social do programa, a idéia inclui a
utilização do espaço público, como as praças, para entretenimento.
“Passamos filmes para os moradores, fazemos gincana ecológica e outras
atividades”.

 

Os riscos

 

Das moradias precárias, a palafita é a que apresenta os maiores riscos à
vida, de acordo com o secretário de Habitação do Ministério das
Cidades, Jorge Hereda. Também pode ser classificada como imprevisível,
uma vez que é difícil de prever quando a estrutura vai desabar.

 

As pontes improvisadas, feitas de madeira, que servem como meio de
locomoção para os moradores, são tão “firmes” como as palafitas. Quando
alguém cai, não é água que absorve o impacto, mas sim o esgoto. “As
pontes são muito precárias. É um dos problemas para quem vive nas
áreas”, diz Hereda.

 

O avanço das palafitas nos meios urbanos é o retrato de como o solo das
cidades é disputado, segundo o secretário de Habitação. “Esse é um
aspecto perverso que caracteriza a ocupação”. Porém, há locais onde os
riscos de habitar uma palafita é menor, como, por exemplo, nas
comunidades ribeirinhas da região amazônica. Para Hereda, esse é um
aspecto cultural e não uma necessidade.

 

Não há no Brasil números exatos sobre quantas pessoas vivem em
palafitas. Mas há um consenso entre os que conhecem esse tipo de
habitação: que um dia, “a casa cai”, literalmente.

0